
Em breve prefácio até então inédito, Francisco reafirma conceitos como o do casamento entre um homem e uma mulher, mas o faz à sua maneira compassiva
Porto Velho, RO - Nos dias que se seguiram à sua morte, o papa Francisco foi chamado de reformista, outsider, influenciador e modernizador. Ele foi tudo isso. Mas também foi o guardião da instituição mais antiga do mundo ocidental. Protegeu a doutrina da Igreja Católica —ainda que o tenha feito ao seu próprio estilo.
Isso fica evidente em um dos últimos textos de Francisco, fornecido ao The New York Times e até então inédito. Trata-se de um breve prefácio para um livro destinado a jovens católicos, sobre os ensinamentos da Igreja a respeito do amor e do matrimônio.
O livro foi publicado pela Fundação Youcat (sigla para "catecismo jovem"), uma organização aprovada pelo Vaticano para apresentar a doutrina da Igreja de forma compreensível para os jovens. A fundação distribui livros em 70 idiomas ao redor do mundo.
No prefácio, Francisco reafirma a posição da Igreja sobre o casamento: que ele é uma prioridade, de importância sagrada, e deve ser entre um homem e uma mulher. Ele não introduz nenhuma novidade doutrinária. Ainda assim, a carta ilustra quem Francisco foi como papa: um comunicador pragmático e compassivo, que soube reformular habilmente, sem necessariamente mudar, a doutrina da Igreja para a era moderna.
"É a confirmação de um legado", disse Raúl Zegarra, professor de Catolicismo na Universidade Harvard. "É realmente um texto clássico do papa."
Estilo retórico
Nas primeiras linhas, Francisco sintetiza muito de sua abordagem ao papado.
"Na minha terra natal, a Argentina, há uma dança de que eu gosto muito e que pratiquei bastante quando jovem: o tango", escreve Francisco, o primeiro papa latino-americano. Ele, então, compara o tango, com toda sua "disciplina e dignidade", ao casamento.
"Sempre me comove ver jovens que se amam e têm a coragem de transformar esse amor em algo grandioso: 'Quero te amar até que a morte nos separe.' Que promessa extraordinária!"
Nessa comparação, Francisco reforça um ensinamento fundamental da fé católica —o casamento como compromisso sagrado e supremo— mas o faz com charme, não com rigidez. "É característico da forma como ele ensina", afirmou Brett C. Hoover, teólogo católico e professor da Loyola Marymount University.
Francisco era especialista em usar símbolos para transmitir lições espirituais (seguindo a tradição das parábolas bíblicas de Jesus). Provavelmente desenvolveu essa habilidade quando tinha entre 20 e 30 anos, ao ensinar literatura a meninos do ensino médio.
Como papa, entrelaçou metáforas, símbolos e até piadas em seus discursos. Francisco certa vez disse que um bom padre deveria "ter o cheiro das ovelhas", por sua atividade pastoral. Também comparou a Igreja a um "hospital de campanha" que cuida dos mais doentes da sociedade.
Essa abordagem o ajudou a se conectar com um público amplo, em contraste com seu antecessor, o tímido e acadêmico Bento 16.
"Ele tornava seus comentários acessíveis", disse Margaret Susan Thompson, professora de história na Syracuse University. "É algo tanto visual quanto tátil."
Conexão com a realidade
Francisco tem sido lembrado, nos últimos dias, como "o papa do povo". Ele se voltou para as duras realidades da vida —pobreza, doença, sofrimento— e se recusou a desviar o olhar. Lavou os pés de prisioneiros. Telefonava todas as noites para pessoas abrigadas em uma igreja na Faixa de Gaza. "Ele sempre buscou lançar luz sobre os problemas do nosso tempo", disse o cardeal Giovanni Battista Re durante a homilia no funeral de Francisco.
Isso também aparece no prefácio. Francisco rapidamente ancora a aspiração do casamento na realidade —a probabilidade estatística de divórcios. "Eu não sou cego, e vocês também não", escreveu. "Quantos casamentos hoje fracassam depois de três, cinco, sete anos?" Ele personaliza ainda mais a mensagem: "Talvez seus pais também tenham iniciado o sacramento do matrimônio com essa coragem, mas não conseguiram levar seu amor até o fim."
Durante todo o seu papado, Francisco demonstrou compreender que os mandamentos da Igreja —sobre divórcio, castidade antes do casamento e uniões homoafetivas— podiam parecer inalcançáveis.
"Francisco foi pároco e depois bispo de uma grande cidade", disse Zegarra. Na linha de frente da fé, viu como as pessoas lutavam para viver segundo os ensinamentos da Igreja. Embora não tenha alterado a doutrina, Francisco tentou ver "se a teologia do matrimônio que temos poderia se expandir para incluir pessoas que tradicionalmente ficavam de fora", afirmou Hoover.
Logo após sua eleição, rompeu com a tradição e celebrou o casamento de 20 casais, incluindo alguns que já viviam juntos e um que tinha um filho adulto. Em 2016, abriu a possibilidade para que católicos divorciados e recasados recebessem a comunhão, concedendo mais autonomia a padres e bispos locais. Em 2023, autorizou padres a abençoarem casais do mesmo sexo.
"Essa experiência molda tanto este prefácio quanto todo o papado de Francisco", disse Zegarra.
Legado
Agora que Francisco morreu, sua carta não será mais impressa no livro para jovens sobre o amor —essa será uma tarefa para o novo papa, segundo a Fundação Youcat.
Ainda assim, ela evidencia não apenas o estilo do papa, mas também algumas de suas políticas mais emblemáticas. No texto, Francisco faz várias referências à sua exortação apostólica de 2016, Amoris Laetitia, um documento de 256 páginas sobre a família que convocava a Igreja a ser mais inclusiva. Ele também menciona sua recomendação para que as igrejas criassem um "catecumenato matrimonial", um programa de preparação para o casamento.
Para alguns, a carta reforçará o legado de Francisco centrado no amor —em praticá-lo e priorizá-lo. Para outros, será um lembrete final de que ele não foi tão longe quanto esperavam na evolução da doutrina da Igreja.
A todos que o lerem, Francisco faz um último apelo:
"Creiam no amor, creiam em Deus e creiam que são capazes de embarcar na aventura de um amor que dure por toda a vida. O amor quer ser permanente; 'até segunda ordem' não é amor", escreve.
"Todos nós temos o desejo de ser aceitos sem reservas, e quem não vive essa experiência frequentemente —sem perceber— carrega uma ferida pelo resto da vida. Por outro lado, quem se entrega a uma união não perde nada, mas ganha tudo: ganha a vida em sua plenitude."
Fonte: Folha de São Paulo
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